quinta-feira, setembro 15

Criança não é adulto pequeno


Criança não é adulto pequeno”

Entrevista com Rosa Célia

02/06/2009

ESPECIAL TRANSTORNOS ALIMENTARES E OBESIDADE INFANTIL


Rosa Célia é de Alagoas, mas se formou em Medicina na Universida

de Federal do Rio de Janeir

o

. Fez pós-graduação na Inglaterra e nos Estados Unidos e retornou para o Brasil, onde trabalhou no serviço público por 30 anos.

Em 1996, fundou o Projeto Pró Criança Cardíaca para dar atendimento e orientação a crianças pobres. Um estudo realizado de 2003 até janeiro de 2009 com 1985 pa

cientes de até 18 anos de idade mostrou que mais da metade desses jovens e crianças estava com colester

ol elevado e que algumas doenças, que antes só eram encontradas em adultos, passaram a ser cada vez mais comuns durante a infância e a adolescência.

Com mais de três décadas de experiência, a méd

ica aponta nesta entrevista ao Projeto Criança e Consumo (CeC) que o estímulo ao consumo durante a infância está entre as causas desse problema e os pais às vezes não sabem lidar com a questão.

Por quê as doenças que antes só atingiam adultos estão cada vez mais comuns em crianças?

A maior parte das crianças que apresentam problemas cardíacos tem problemas congênitos. Existem também as patologias adquiridas. Uma delas é a miocardite viral, que não tem nada a ver com alimentação. Mas nós pesquisamos quase duas mil crianças entre sete e 18 anos e descobrimos que o consumismo – e não só de comida – está transformando essas crianças em adultos. Fiz um trabalho enorme, a minha vida inteira, provando que criança não é adulto pequeno. E hoje a relação com o consumo e a maneira de se portar fez com que a criança se tornasse um adulto.

O que isso significa em relação à alimentação?

Significa que a criança está comendo como um adulto, sem nenhuma orientação. Uma mãe falou para mim que a filha está cheia de celulite e que pede para ela comer alimentos saudáveis, mas que “só come o que não presta”. Eu falei “Mamãe, ela come o que não presta porque você tem em casa”. Se a casa é cheia de biscoito, refrigerante, pão de queijo e tudo o quanto é guloseima, como é que a criança vai comer a verdura e o caldinho de feijão? Não vai. Além disso, uma porcentagem enorme das nossas crianças come em frente à televisão.

Estamos observando um aumento do nível de colesterol nas crianças. Como o aumento de colesterol não dá sintomas, estamos vendo cada vez mais pessoas ficando doentes precocemente, de doenças que eram do idoso. Como, por exemplo, a hipertensão arterial, as alterações do sistema vascular por causa do lipidograma alterado. E isso está acontecendo em decorrência desse desmando na alimentação.

Essa mudança no comportamento começou a partir de quando?

Vamos usar como exemplo a minha infância. Naquela época, não havia televisão, não tinha supermercado, não tinha essa fartura de comida que tem agora. A gente comia o que tinha na casa. Até doce de tomate se fizessem, a gente comia. A gente tinha fome e aí comia o que a mãe mandava. A oferta de comida aumentou muito, assim como a facilidade de se comprar, e aí a criança come o mesmo que o adulto. Não se pode tratar criança como adulto.

Você fez uma pesquisa sobre esses hábitos. Qual o resultado?

Hoje, as crianças estão comendo excesso de carboidratos, de gordura e percebe-se que a mudança está relacionada a três fatores: ao supermercado, ao excesso de chamadas na televisão, à beleza desses alimentos e à mãe trabalhando fora. Nesse caso, ou a criança está sendo cuidada pela empregada ou, nas classes menos favorecidas, muitas ficam sozinhas.

A única coisa que eu sugiro sempre aqui é que não tenham em casa esses alimentos não saudáveis. Algumas mães dizem: “Ah Doutora Rosa, ela não vai comer”. Tudo bem, ela não vai comer por dois dias e depois ela vai comer. Como é que lá em casa, quando eu era pequena, a gente comia até pescoço de galinha?

A falta de alguém que oriente a alimentação, aliada à televisão, pode agravar o problema?

Quando você come vendo televisão, não sabe o que está comendo. Então, você não mastiga direito a comida. As crianças vão empurrando a comida com água. Não há programas para todos os níveis da população orientando a disciplina na alimentação, o que deve ter em casa, a importância de desligar a televisão na hora em que vai fazer a refeição.

O que de pior a criança brasileira mais consome?

Gordura e carboidrato. Fritura, batata frita, hambúrgueres, chocolate, pão de queijo e biscoitos. É muito mais fácil o garoto comer pão e biscoito do que comida fresca. O macarrão instantâneo é fácil porque já vem com o molho pronto, que é feito de sal. Nada presta naquele produto. Tinha um menino que veio ser atendido que era obeso e só comia macarrão instantâneo o dia inteiro. E a família comprava estoque desse produto.

Outra coisa, antigamente tinha festinha todo fim de semana? Não tinha. E ninguém vai comprar bolo de cenoura para a festinha do filho. Mas quando meus filhos eram pequenos, era uma festa ou outra. Agora, toda semana as crianças vão a festas e comem um monte de porcaria. Aí, a avó acha bonitinho aquele netinho ser gordinho.

Mas o problema é só com a criança que está acima do peso?

Não. O que mais surpreende são crianças magras com lipidograma alterado. Tem um componente enorme que é a genética. Nós fazemos o perfil da família. E a criança que tem um perfil forte para lipidograma alterado, para doença vascular, como infarto ou acidente vascular cerebral, tem maior risco. Precisaria ter um trabalho sério do governo. Se houvesse um trabalho preventivo, o número de jovens com hipertensão, com alteração de coronária diminuiria muito.

Como você avalia o papel da publicidade de alimentos nessa situação?

Não tem como deter isso porque o mundo virou marketing. O que precisa fazer é os pais reduzirem o tempo que as crianças ficam em frente à televisão. Isso está aumentando cada vez mais porque não tem ninguém cuidando delas em casa. Quando tive crianças pequenas, trancava a televisão dentro do armário, porque tinha de trabalhar. Ficava fora o dia inteiro e queria que me obedecessem.

E em relação ao supermercado?

Ir com crianças ao supermercado é briga na certa, porque eles querem encher o carrinho de porcaria. A mãe fica com vergonha dos outros e começa a deixar. Eu não. Podia rolar no chão. Além do mais, com aquelas prateleiras cheias de tudo, a própria família compra. Tem família que é gulosa. Às vezes, nem o marido aceita abrir mão de certos hábitos.

Os pais de crianças obesas também sofrem com o problema dos filhos?

Boto a responsabilidade toda neles. Eles são os culpados. “Olha para sua barriga mamãe, olha para sua barriga papai”. O tratamento deve ser um programa familiar em que todo o mundo tem de abrir mão. Família é família.

Qual dica a senhora daria para os pais?

A família não pode ter alguns alimentos em casa. É a única maneira. Como a criança vai comer cenoura com uma geladeira cheia de iogurte? Eu comprava iogurte e meus filhos queriam comer todos no mesmo dia. Pode comer. Acabou? Já comprei o da semana. Tem de ter regra, não adianta. A criança pede disciplina. Ela pede que alguém cuide dela. A criança quer ser cuidada. Ela briga e reage, mas quer ser cuidada.

Dura muito o tratamento para crianças que têm problemas por causa da alimentação inadequada?

Vai depender da patologia. Umas vão apresentar cansaço, outras recusam comida, se a criança é maior, pode se queixar de dor no peito. Tem muita criança que chega a ser operada e tem de operar de novo.. Algumas vão precisar de acompanhamento pelo resto da vida.

E as que têm colesterol alto?

Esse é o mal porque colesterol não dói. Colesterol não dá sintoma nenhum. Vai dar depois de adulto. Mas, se a gente puder corrigir agora, melhor.

Como a senhora avalia a política dos estados e do Governo Federal em relação à saúde infantil?

Acho que é igual no Brasil inteiro. Tudo está desestruturado. O que falta é disciplina no povo. O povo acreditar em alguma coisa. A escola tem que ter um papel mais educador. Não adianta pensar que os pais fazem, porque não vão fazer. Os pais, coitados, muitas vezes também não têm informação. E isso acontece em todas as classes socioeconômicas.